8.4.10

Da livre natureza dos sistemas
João de Souza Leite

Aos olhos do leigo, um cartaz não é exatamente um cartaz, é sobretudo uma possibilidade de conexão a um evento, um acontecimento ou um produto. Qualquer que seja a informação ali encerrada, para o leigo importa a sensação despertada, o sentido tornado alerta, embora não saiba por que nem como se dá tamanha mobilização pessoal diante de uma simples folha de papel impresso. Em segundo lugar, geralmente, importa-lhe a precisão de informação ali contida.

O que nos interessa aqui, e que parece ser fascinante, é a possibilidade de desvelar os artifícios utilizados por Kiko Farkas na construção de tão variado, e ao mesmo tempo tão coeso, conjunto de cartazes para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, projetados entre 2003 e 2007 por ele e sua equipe. Cerca de 300 cartazes diferentes pensados e impressos nesses quatro anos e meio. Na média, algo em torno de seis cartazes por mês. Por vezes, até oito em um só mês!

De riqueza e variedade singulares, essa produção ecoa temas explorados ao longo da história do design. Dito isso, desse modo, pode parecer que a sua originalidade se coloca em risco. Ou ainda que o trabalho de Kiko, por demais pessoal, pudesse deixar de lado alguns compromissos básicos do design gráfico. De modo algum. É justamente na confluência desses e de alguns outros fatores que cercam o projeto e a produção dessa formidável coleção que se encerra o maior desafio para a sua análise.

Aqui, portanto, entre outros aspectos, importa tecer comentários a respeito da liberdade de Kiko em relação a certos cânones formais, importa admirar e apontar seu rigor tipográfico. Esses aspectos constituintes do trabalho confirmam um preceito primeiro do design gráfico, aquele que supõe um outro, um alguém a ser comunicado, ou um grupo de pessoas a ser informado. Um leigo, enfim, que não somente será capturado, mas instigado por suas imagens, e que ainda será devidamente informado de coisas triviais, mas muito precisas, como local, data e hora dos concertos realizados pela magnífica orquestra, lado a lado, e sem esquecer o devido destaque, aos compositores, suas obras, condutores e solistas dos espetáculos.

Kiko Farkas – neto de Desidério Farkas, o fundador da Fotoptica, filho de Thomaz Farkas, notável fotógrafo de origem húngara como László Moholy-Nagy, que tanto repercute em suas fotos – nasceu, como se vê, em família ligada à imagem. Fosse por sua produção, por seu enquadra mento, por seu comércio, a imagem lhe foi o centro de casa.

“Havia um laboratório de fotos em que meus irmãos mais velhos se enfurnavam às vezes a noite inteira. Não tinha muita paciência para aquilo e preferia a biblioteca e a discoteca do meu pai ondedurante muitos anos descobri coisas maravilhosas. Quer um exemplo? Que tal a coleção completa da revista Graphis? Ou ainda todos os anuários da mesma editora? Livros do Saul Steinberg? Lá estavam... HQ da Barbarella? Lá estava. Salvador Dalí? Também. Álbum de cartazes art déco. A coleção de arte antiga da editora Skira, onde as imagens são impressas a sete cores com dourado e azul especial, estava lá.”

Kiko teve também uma formação artística:

“Tive aulas com o Luiz Paulo Baravelli, o Frederico Nasser e o Carlos Fajardo. Na fau, em 1977, comecei a fazer gravura em metal no ateliê do Sérgio Fingermann. Lá havia também um ateliê de aquarela e xilogravura com a Renina Katz. Em 1979, passei um ano em Nova York no Arts Students League, estudando com um professor que tinha sido aluno do Georg Grosz. Era desenho de modelo vivo todo dia de manhã, em escala natural. Foi um aprendizado incrível, aprender a olhar. Nesse período, desenhei todos os dias, praticamente todo o tempo, fazendo aquarelas, gravuras, cadernos de anotação”.

Assim, leitores, o notável conjunto – por quantidade e qualidade, ambas condicionadas pelo tempo de realização – nos remete à recorrente questão: é arte ou é design?

Muitos binômios foram, ao longo dos tempos, articulados em oposição no campo das realizações gráficas. Arte e design é certamente um dos mais reincidentes. Na Bauhaus, grande matriz moderna do ensino de design, arte e técnica se combinaram em sua guinada pelo rigor construtivo que passou a orientar sua produção a partir de exposição de 1923. Por esse caminho, abriu-se a porta para o construtivismo e posteriormente para a arte concreta como matriz do pensamento moderno na arquitetura, no design e nas artes gráficas. E foi por esse caminho, ainda, que se optou por uma definição do design em oposição à arte. Os cartazes de Kiko dão margem a essa discussão.

Expressão pessoal e informação foram muitas vezes consideradas antagônicas, na maior parte das vezes em infeliz formulação, por se desconsiderar o grau de interferência dos aspectos simbólicos presentes em toda manifestação humana sobre o âmbito da comunicação, questão tratada por Katherine McCoy em seu artigo “Information and Persuasion: Rivals or Partners?”. No pequeno artigo publicado na revista Design Issues, a designer e ensaísta norte-americana desmonta definitivamente a ideia de que um aspecto possa se desvincular do outro.

Pouco importa, os cartazes em questão nos impõem o desvio da enfadonha questão. Como separar aqui campos tão irmanados? Mais vale nos concentrarmos no tipo de matéria de que se vale o autor. De que natureza foram seus instrumentos conceituais e técnicos? Quais os recursos de que dispôs? Esses, sim, alguns dos tópicos merecedores da nossa reflexão.

Ainda outro, talvez dos mais significativos no campo do design gráfico, diz respeito a “identidade”. Central à atividade, nada do que se faça em design gráfico deixa de considerar, em algum grau, por vezes em seu mais determinante grau, a questão da identidade.

Já que o conjunto de cartazes articula função tão claramente identitária, ao longo da imensa coleção Kiko torna possível a construção coesa de uma linguagem que, por fim, se mimetiza com a própria natureza do fenômeno a que se refere – as manifestações musicais da Osesp. Aqui ecoa, de certo modo, o que Walter Gropius se propunha na sua Bauhaus:

“O principal fundamento da Bauhaus é a ideia de uma nova unidade; uma conjunção das artes, estilos e aparências formando uma unidade indivisível. Uma unidade completa em si mesma, cujo significado somente é gerado através do vigor da vida.”

Expressão subjetiva, puro ensaio pictórico? Rigor estrutural revelado pelo uso da tipografia? Em que medida uma característica atende à outra, ou em qual medida entram em colisão? Em que medida o valor estético se impõe ao manejo dos processos técnicos? E, no sentido contrário, quando a técnica provê uma solução? Por fim, qual o grau de controle do processo exercido por Kiko e sua equipe em obra dotada de tamanha vitalidade? Essas questões permanecem no horizonte da nossa reflexão e nos conduzem a outras: quais as suas referências? Quais se manifestam nessa imensa produção? Alguma pista, segundo Kiko:

“O primeiro desenho que me marcou foi o Tintin. Até hoje fico besta com a clareza e economia do Hergé. A primeira grande referência entre os designers foi sem duvida Milton Glaser. [...] Outra referência fortíssima foi Saul Steinberg. [...] Depois descobri os poloneses, entre eles Roman Cieslewicz e Henryk Tomaszewski, e os outros, Paul Rand, A. M. Cassandre, Shigeo Fukuda.”

Nenhum nome vinculado ao chamado Estilo Internacional é citado. Armin Hofmann, Karl Gerstner ou Josef Müller-Brockmann não aparecem, até porque, por questão cronológica, nenhum deles poderia estar mais diretamente vinculado à sua formação. Mas é por aquele caminho, em meio a tamanha experimentação formal, que podemos notar certa persistência do moderno. Se as referências de Kiko remetem à precisão do traço de Hergé, ao lirismo e ao humor de Steinberg, à liberdade polonesa ou aos experimentos matisseanos de Paul Rand, ainda assim aqueles outros não citados lá se fazem presentes, embora Kiko não lhes deva nada. Mas então a quem deveria? Afinal, nada surge do nada, a vida se apresenta constantemente contendo traços do passado, ainda que entranhados em seu novelo, sem contorno muito nítido. Ainda assim, lá estão eles, em meio à nossa atitude – dos designers – diante dos projetos, em meio à nossa compreensão sobre os modos do como agir.

Não há outra maneira de se referir a esse tipo de fenômeno a não ser como a continuidade daquilo que é, por princípio, descontínuo – a vida. Essa não seria uma maneira de se refletir sobre essa obra para poder dela retirar algo que a transcenda, caminhando em direção a uma maior compreensão do que seja design?

Primeiramente, não nos devemos enganar e conduzir essa análise como algo que possa revelar um mesmo procedimento de conceituação, ou de projeto, como queiram. O conjunto de cartazes constitui diferenciadas séries que revelam diferentes partidos. Diferentes jogos de linguagem.

O designer é, antes de tudo, um manipulador de linguagens. Diante de cada problema apresentado, um conjunto entrelaçado de situações vem à baila, em um processo de perscrutação quase tátil. Identificam-se seus principais atores, em geral um demandante – um cliente – que almeja comunicar-se, para fins variados, com um determinado grupo de indivíduos – o público. Mas essa cena não se limita à participação de dupla tão conhecida. No cenário onde vai ser gestada uma determinada forma de comunicação, múltiplas vozes vão ali se articular: o designer, com suas habilidades específicas, condicionado por sua história pessoal e por toda sua carga eletiva baseada em afeto; a história do design gráfico vai contracenar, ora como pano de fundo, ora como referência explícita; as possibilidades tecnológicas; o objeto em si dessa comunicação... Enfim, em uma situação específica de projeto, serão muitas, inevitavelmente, as vozes que irão sobressair ou se misturar em acorde por vezes dissonante, por vezes harmônico.

Portanto, manipulador de linguagem fomentada por uma natureza muito diversa de estímulos, o designer será, sem dúvida, o maestro dessa polifonia. E sua escolha e decisão – sobre a natureza da imagem, sobre os elementos da tipografia, sobre a técnica de representação – serão determinantes nos resultados do trabalho.

Assim, Kiko confere a todos os cartazes a sua marca, mas como ela será de fato, se a forma tanto varia e os habituais traços de identidade se transformam a cada nova série? O que se evidencia não é o seu traço de ilustrador, mas sua identidade de designer. O designer que, em face daquela miríade de informações, determina caminhos, andamentos e intensidades. E no conjunto se revela reiteradamente uma constante que, por fim, se estabelece como sua identidade comum.

O sonho de “uma relação íntima entre as artes plásticas e a música”, expresso pelo maestro John Neschling, o mais direto responsável pela oportunidade utilizada sem parcimônia por Kiko, proporcionou, em seu dizer, a possibilidade na qual “nós, da orquestra, teremos a honra de nos mostrar, fazer ver e não de nos fazer ouvir”. Aqui, enganou-se o maestro. Os cartazes para a Osesp repercutem sons, remetem a sequências rítmicas e tonais.

Na Bauhaus, nas experiências formais e na reflexão teórica conduzidas por Vassíli Kandinski, observa-se uma recorrente alusão às relações entre imagem e som, quando o artista estabeleceu relações diretas entre a natureza das formas, seus elementos e as relações que os governam. Estão lá, relatados com precisão: ritmo, contraste e proporção. De que é feita a vida se não de relações dessa natureza? De que tipo de relações constitui a música? É assim que Giulio Carlo Argan se refere à celebrada pintura de Kandinski, afirmando que sua pintura não necessita de um referente para sensibilizar o público, sua abstração a que nada refere encontra nas pessoas algo em comum. Embora não haja traço de algo do mundo real e concreto ali retratado, Kandinski consegue emocionar, provocar a reação de pessoas que, de algum modo, se relacionam sem intermediários com os sentimentos ali expressos.

“Da realidade em que o pintor, como qualquer outro, está mergulhado, ele não recebeu nem reteve senão imagens caducas, fragmentárias, desconexas; não de objetos definidos, mas de coisas paradas ou móveis, aguadas ou arredondadas, filiformes ou expandidas. Essas impressões não servem para reconhecer os objetos e menos ainda para representá-los, interessam [grifo do autor] ao sujeito, cuja existência também é constituída de êxtases e movimentos, tensões e distensões, e se realiza em um ambiente igualmente constituído por êxtases e movimentos, tensões e distensões.”

Se a operação conceitual e pictórica de Kiko Farkas guarda alguma semelhança com o exposto a respeito de Kandinski, disso, no entanto, não resulta um mero jogo sintático. Muita significação é por ele agregada, que faz a mesma operação: vibração rítmica somada a imagens selecionadas que ora ressaltam o lirismo de uma sessão anunciada, ora as rupturas tonais de outra.

Sobre a captura da imagem, ou sobre sua invenção é fundamental se perguntar: qual a decisão que se deu na escolha de uma borboleta, de um círculo, ou de uma foto da cidade de São Paulo? Para nosso propósito, não importa a imagem, já que nos interessa o autor e suas escolhas. Porque, necessário reafirmar, estamos diante de um designer-autor. Não um daqueles que gostaria de se perder no anonimato de caráter universal pretendido pela arte concreta, não! Kiko se situa simultaneamente no moderno e no contemporâneo, que contém a crítica ao moderno. Portanto, desde que sua voz se manifeste límpida, com característica autoral, no resultado de seus cartazes – lá está sua assinatura, tal qual Paul Rand assinava, tal qual Ivan Chermayeff assina, tal como Milton Glaser ainda o faz –, importa saber o que move a seleção ou a criação desta ou daquela outra imagem que lhe vai servir de mote para seu exercício gráfico.

Aí não importa de onde veio a imagem, importa o olhar. O olho que determina um enquadramento, que avalia sua possível utilização, seu rendimento como textura, mas também como modo de capturar outros olhos, o olhar do homem comum, do observador disponível, do leigo. Esse olhar, o que seleciona, é culto, sem dúvida. É elaborado, pois reafirma todo o cabedal de informação que lhe confere a formação de designer. É o que o pesquisador inglês Nigel Cross chama de “designerly ways of knowing”. Esse olhar culto, elaborado, é fruto da trajetória pessoal de Kiko e do seu exercício como designer, que tem que ceder às circunstâncias especiais de cada projeto – suas limitações tecnológicas e temporais, além da necessária e precisa informação a ser repassada.

Desse modo, eis aqui alguns dos procedimentos adotados nesses múltiplos jogos de linguagem consubstanciados nas séries de cartazes:

a. imagens repetidas em proporções diversas, cuja disposição no espaço dado remete à repetição sistemática da construção musical;

b. formas orgânicas que contêm outras formas orgânicas da mesma espécie, reproduzindo estampas que se multiplicam em diferentes escalas;

c. texturas orgânicas conjugadas a formas geométricas e que escapam das formas que as encerravam, acentuando o contraste;

d. texturas irregulares, ainda que organizadas segundo algum padrão, que proporcionam o contorno para outras formas orgânicas;

e. exercícios com linhas que criam superfícies cujas posições se alternam através de dobraduras, torções e justaposições, estabelecendo ritmos e evoluções musicais;

f. o contraste proporcionado pela ordem tipográfica em contraste com o traço resultante do movimento gestual;

g. o dripping, homenagem direta ao controlado acaso desenvolvido por Jackson Pollock, conjugado à ordem precisa da tipografia;

h. imagens encontradas pelo olhar atento, sejam elas capturadas por outros, seja pelo próprio autor, não importa;

i. tramas quadrangulares conjugadas com tramas regulares de círculos, com um jogo de trazer para a frente, levar para trás, obtendo formas sempre originais;

j. o jogo contrastante entre escalas radicalmente diferentes da tipografia, à maneira de Aaron Burns; entre tantos outros...

Retornando à tese sobre a persistência do moderno no trabalho de Kiko, é nítida a presença, como pano de fundo, muito marcante aliás, daqueles mestres do Estilo Internacional – Emil Ruder, Josef Müller-Brockmann, Armin Hofmann e Karl Gerstner –, expressão cunhada para definir um tipo de jogo linguístico elaborado ao longo dos anos 1950-60, originado na Suíça, quando a ideia de sistema era central no design gráfico. Todos eles, naquela época, dedicaram-se a uma produção ímpar na história da linguagem gráfica, em que a noção de estrutura determinava a ordem tipográfica, conjugada com exercícios rítmicos e de contraste. Não por acaso, alguns de seus mais importantes cartazes dizem respeito a apresentações musicais.

Por mais que esta série de cartazes desenvolvida para a Osesp seja absolutamente original, livre, e carregada de uma intensa expressão pessoal, seu resultado está fortemente impregnado dessa cultura, talvez a mais emblemática do design gráfico moderno. Por essa razão, é que o trabalho aqui apresentado se inclui na experiência do design como um todo, não sendo possível impingir-lhe qualquer tipo de rótulo, a não ser o de ser um partícipe, dos melhores, junto àqueles dessa grande trajetória.

Livre, investigativo, propositor de novas formas, reciclador de velhas formas, Kiko ainda acrescenta algo que se situa, talvez, no centro, no verdadeiro eixo da atividade: a tipografia como protagonista. Ainda que por vezes sua presença seja aparentemente complementar à imagem, este é um trabalho que não se finaliza, que não se concretiza na fruição de um único exemplar dessa imensa série. Há algo que, se supõe, seja contínuo, que se realimenta da experiência passada – no último concerto, você viu? – e que pavimenta o caminho para a leitura futura. Nesse sentido, a tipografia é protagonista. A chave é o jogo de contrastes, as precisas guias de ordenação, os conjuntos de massa gráfica configurados por essas pequeninas coisas que nos servem para dizer tanto: letras transformadas em tipografia.

Por essas e outras, Kiko Farkas é sobretudo um designer. Sua destreza lhe autoriza um raro grau de liberdade no controle dos seus sistemas. Ao longo de seu caminho, com o olhar tão diversamente orientado, Kiko segue imerso no que se pode nomear, sem dúvida, como a tão notável cultura do design.



João de Souza Leite é designer, com doutorado em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ (2006). Leciona no Departamento de Artes e Design da PUC-Rio e na Escola Superior de Desenho Industrial Esdi. Entre seus trabalhos escritos estão Design: entre o saber e a gramática e A herança do olhar: o design de Aloisio Magalhães (pesquisa, organização e textos), ambos premiados pelo Museu da Casa Brasileira (2003/2004). Dedica-se ao estudo de tópicos em design gráfico, gestão, história, epistemologia e cognição em design.


O texto acima foi publicado no livro Cartazes Musicais de Kiko Farkas, recém-lançado pela editora Cosac Naify.

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