25.10.04

LUCIDEZ

A tarde iluminava bem a varanda, o sol do campo não encontrava obstáculos para varrer o verde e brilhar a madeira. Só aquele senhor sentado a olhar as flores. Um olhar triste, meio abatido se juntava com as rugas que ganhara durante a vida.
Uma margarida soltou uma pétala. Hesitou, quis se levantar, a coluna doía, juntou forças e saiu da cadeira. O vento forte balançava seu cabelo. Pegou a pétala. Lembrou dela. Três décadas.
A textura da pétala lembrava sua face jovem. Delicada. Parou uns instantes. Fechou os olhos. O que será que ela pensava dele? Havia cometido tantos erros nesses trinta anos. Faltou com carinho. Vamos amanhã? Quem sabe amanhã? Trabalhou demais.
Não, agora não, não vou pensar nisso agora. Que importância? Um dia saí mais cedo. Tudo que pensar não vai me tirar essa sensação. Foi uma constante? E os três filhos? Ela sempre os quis.
Abriu os olhos. Não conseguia medir as coisas. As lembranças nunca foram parcas. Levantou-se. Voltou novamente a sentar na cadeira de balanço. O sorriso era uma coisa que não lhe vinha à face.
Era um homem pacato. Vencido pelo câncer de pulmão, a escoliose crônica, e várias doenças hepáticas. Embora isso não o incomodasse. Sabia que um dia isso viria a acontecer, nunca cuidou da saúde: fumou, bebeu em demasia. Aos noventa e três anos ainda era lúcido e lembrava de cada dia de sua vida.
A cadeira não trazia paz `a sua mente. Tudo que podia ter sido na vida, e foi. Será que tinha aproveitado de tudo? O sol já se ia e uma nuvem negra lá no horizonte se aproximava. Lembrou de quando batera no filho. Lástimas. O que será que teria acontecido se não tivesse esbofeteado a cara dele quando o menino quebrou um vaso chinês da mãe? Teria sido um menino melhor, sem rancor? Se envolveria com a desobediência e a desordem? Imaginar outros caminhos era difícil.
O tom laranja de despedida do sol aliviava a face queimada pela tarde quente e abafada. Tornou a fechar os olhos. Ponderou. Já não sabia mais para quê fazia aquilo. Mesmo assim remoia cada ação de sua vida. Cada detalhe, cada pensamento. A nuvem se aproximou um pouco mais.
A porta enferrujada fazia um barulho desagradável. Não quis se levantar para consertar. Abriu os olhos e avistou ao longe o lago que presenciou grande parte de sua vida. Não tinha mais razão para pensar. Foi porque foi assim. Não fizera nada de errado. Apenas viveu. As decisões que tomou, já não importam se acertadas ou não, eram dele. E isso o tornou ele mesmo. Outros rumos, acariciado o filho tivesse, amado a mulher. Não era para ser assim. Viveu.
A nuvem chegou. Uma chuva fina molhou a casa. Sentado, parou de respirar.

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