15.5.08
Ontem vi de novo O Homem com uma máquina de filmar, do Vertov. Feito no começo do século XX, é o puro deslumbramento do cara com uma máquina de filmar. Filmou tudo, mulher, carros, objetos, animais, fez fusões, enfim, se divertiu. Claro que o filme é mais que isso, mas fica na cara esse deslumbramento. Foi mais ou menos como eu fiquei quando vi este filme, consegui nem saber porquê. Não sei se foi pela técnica ou pela mensagem ou por qualquer outra coisa. Alguém tem um eno para eu entender logo essa porra?
http://www.blublu.org/sito/video/muto.htm
http://www.blublu.org/sito/video/muto.htm
6.5.08
Referência fast-food
por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
A qualidade de boa parte da informação oferecida pela Wikipédia, a enciclopédia das novas gerações, está abaixo da crítica
Gerações anteriores de estudantes de classe média usaram a Barsa, a Mirador ou a Larousse da família, às vezes até uma biblioteca. Copiavam, claro, mas ao menos tinham de ler o texto para passá-lo ao papel almaço com a caneta.
A atual tem uma só referência e gasta menos tempo. Em “Só faço trabalho com Wikipédia”, comunidade do Orkut, uma usuária escreve: “No Google aparecem várias coisas e a gente não sabe qual está certa... Já na Wiki vai diretinho!” Outra responde: “É bom porque não precisa gastar tempo procurando, é só ir lá que o trabalho já está feito. O único trabalho é apertar Ctrl+c e Ctrl+v, mandar imprimir e acabou...”
Parece que funciona. Sinal de conivência dos professores, pois é igualmente fácil checar, com qualquer buscador, se o texto foi colado da internet sem roçar a massa cinzenta do aluno. Pensando bem, talvez nem sempre isso seja ruim. Estudar certos verbetes da Wikipédia é pôr em risco tudo o que se aprendeu, se não a sanidade mental. Uma advertência do ministério competente não estaria fora de lugar.
O artigo Ditaduras, centenas de vezes editado e revisado desde 2004, é um texto raso, confuso, mal escrito, quase ininteligível: “O termo ditadura tem o significado de oposição à democracia, onde o modelo democrático-liberal deixa de existir e a legitimidade passa a ser questionada, pois as ditaduras modernas são um movimento totalitário...” Arremata, triunfal: “Liberdade democrática é o direito que todos os cidadãos têm de escolher um ou mais representantes que governarão o país tendo em conta os interesses de todos os cidadãos. Essa liberdade é congestionada (sic) numa ditadura”.
O verbete Arianos, com histórico similar, é outro feixe de tolices e contradições. Começa já discutível: “Esta página é sobre o povo antigo que colonizou a Índia”. Seguem informações ainda mais duvidosas ou errôneas: “Por volta dos anos 8000 a.C. e 5000 a.C. um povo de língua indo-européia originário de uma zona localizada entre o Mar Negro e Mar Cáspio, nas montanhas do Cáucaso, migrou por toda a Eurásia”. No parágrafo seguinte cai no absurdo: “A maioria da população européia é de origem ariana, daí a denominação da maior parte raça européia. Existem influências pré-arianas como os lusitanos, iberos e os ilusivos (sic) bascos”. Termina com uma tripla barbaridade: “Os arianos são de origem védica, da região conhecida como Tâmil, próximo da região bengali”.
O desvairado verbete Nova Ordem Mundial (conspiração) passou por dezenas de revisões e continua a dizer: “Criou-se, através do governo oculto, o mito da ecologia. É dada às crianças a liberdade de ir e vir, ao mesmo tempo em que se combate qualquer tipo de trabalho infantil, e se impede que as escolas usem medidas de controle contra os alunos. Por influência de uma alimentação suspeita de ser à base de hormônios, a média de altura de 1,70 m para homens adultos subiu para 1,80 m. Com isso, qualquer criança de 12 anos acaba sendo maior que seus pais, impossibilitando seu controle.” Um administrador mais sensato propôs eliminá-lo. Foi contestado: “Tem nas outras (línguas), na nossa também deve ter”.
Verbetes de (auto)promoção são comuns. Por exemplo, o do medíocre escritor paulista Orlando Paes Filho: “Baseada em uma precisa pesquisa histórica de fatos e pensamentos da Idade Média, a saga de Angus se estenderá (sic) por sete livros e cobrirá doze séculos da nossa (sic) história”. Ou o da marca Close-up: “Com este nome a Unilever mantém um projeto de prevenção e promoção de saúde bucal (...). A marca é um dos grandes destaques do mercado publicitário”. Seguem vínculos para sites de propaganda. Ou Dove: “Uma marca de história e um caso de sucesso no mundo inventivo do marketing de produtos”.
Também nos EUA, estudantes se acostumam com informação instantânea a tal ponto que procurar uma ou duas horas por uma boa fonte lhes parece absurdo. Um estudo sobre hábitos de pesquisa no conceituado Wellesley College, de Massachusetts, fez seis questões a alunos de uma turma de computação. Menos de 2% usaram fontes fora da internet para responder a qualquer delas. E a maioria se satisfez com a primeira informação que encontrou, sem conferi-la em outras fontes.
“Wiki”, em havaiano, é “rápido”. Rápido demais.
O projeto surgiu em 2001. Larry Sanger era, desde o ano anterior, o editor-chefe de um projeto sério, a Nupedia: uma enciclopédia on-line gratuita, de qualidade profissional, escrita e revisada por especialistas com, pelo menos, grau de doutorado.
A exigência de rigor exigia tempo e a Free Software Foundation, fornecedora da tecnologia, decidiu que o tradicional processo acadêmico de revisão por pares era burocrático e contrário à filosofia “democrática” do software livre. Iniciou um projeto concorrente, a GNUPedia. A pressão levou Sanger a criar a Wikipédia como um rascunho para que voluntários anônimos propusessem colaborações, antes que uma revisão formal as liberasse para a Nupedia.
O novo portal atraiu, como se esperava, os interessados no projeto concorrente, mas a crise das pontocom se agravou. Jimmy Wales, financiador do projeto, cortou o salário de Sanger, que se demitiu. A Nupedia foi abandonada com 24 artigos prontos e 74 em elaboração e a Wikipédia cresceu sem controle. Hoje, inclui 1,6 milhão de artigos em inglês e 4,8 milhões em 249 “línguas”, incluindo dialetos como “napolitano”, “lombardo” e “alemão da Pensilvânia” e pseudo-idiomas artificiais como klingon e volapuque.
Em 2004, no site kuro5hin.org, Sanger fez uma crítica muito dura à filha transviada. Explicou ter deixado o projeto por ser muito sério para um hobby em tempo parcial, mas também por não ter paciência para aturar, de graça, a “atmosfera venenosa do projeto”.
A começar pelo próprio Jimmy Wales, explicou Sanger, a comunidade da Wikipédia tem uma cultura antiintelectual. Falta respeito para com a perícia e experiência de especialistas e sobra tolerância para com quem os despreza e ridiculariza. Quem tem qualificação, mas pouca paciência, desiste: ao editar artigos sujeitos a qualquer controvérsia, terá de defender exaustivamente suas opiniões contra leigos ineptos, prontos para desfigurar seu trabalho e denunciar suas objeções como “censura”. Se reclamar, receberá um passa-moleque ou um pedido para “cooperar” com colegas incultos e pouco razoáveis. Muitas pessoas capazes, dispostas a cooperar educadamente com parceiros que fossem racionais, bem informados e bem-intencionados, caíram fora.
Em junho de 2006, depois de um festival de auto-elogios, calúnias sem provas, insultos, supressão de dados incômodos e sabotagens a biografias de políticos e personalidades, Wales impôs um mínimo de ordem. Fechou alguns dos artigos mais controversos a edições não autorizadas pelos administradores e criou um comitê de arbitragem. Começou-se a assinalar afirmações duvidosas com a nota “Carece de fontes” (confira o verbete Ditaduras cubanas para um exemplo tragicômico). Mas, em nome dos “direitos individuais”, Wales recusou-se a incorporar um controle editorial mais extenso.
A idéia é que, por tosco e parcial que seja o artigo inicial, as sucessivas edições, mesmo por usuários não especializados, logo o melhorariam e o aproximariam do estado da arte, à medida que cada um trouxesse o seu pedacinho de informação – tanto que a organização mede a “profundidade” de seus artigos, acredite se quiser, pelo número de alterações feitas.
Assim como certos economistas pensam que a soma dos conhecimentos de milhões de participantes de uma bolsa de valores resulta necessariamente na melhor avaliação possível de uma empresa ou mercadoria, que nenhuma análise ou perícia especializada poderia sonhar superar. Não é verdade na economia, como se viu no colapso do índice Nasdaq e de gigantes como a Enron e a Worldcom na virada do milênio.
Muito menos no conhecimento. Basta um passeio rápido para se constatar que (ao menos na versão em inglês) um verbete tem mais chances de ser bem-feito e confiável quando trata de um tema tão especializado e insignificante aos olhos do leigo que os especialistas têm permissão de trabalhar em paz.
Mas o usuário médio fica satisfeito por encontrar uma resposta rápida. Audiências de executivos e marqueteiros, às quais Robert McHenry, ex-editor-chefe da Encyclopedia Britannica, perguntou se não era importante que a resposta também fosse correta, responderam com olhares de embaraço ou de indiferença.
McHenry rastreou a história de um verbete para mostrar como sua dialética encaminha o texto não ao estado da arte, mas sim à mediocridade do usuário médio. Um artigo razoavelmente coerente sobre um dos “pais fundadores” dos EUA foi emendado por palpites e opiniões contraditórias até cair ao nível de uma redação ruim de ensino médio (grau C, na sua avaliação). Seu conselho:
– Quem vai à Wikipédia aprender algo ou confirmar um fato está na situação de quem visita um sanitário público. A imundície pode ser evidente e levá-lo a ter cuidado, ou a aparência de limpeza pode lhe dar uma falsa sensação de segurança. O que ele certamente não sabe é quem foi o último a usar a privada.
Ou a rabiscar a porta. Em 6 de fevereiro, quem procurasse, na versão em inglês, pelo rei Alfredo, o Grande – um dos mais importantes da Inglaterra medieval – encontraria apenas a frase “he was a gay boy” (ele era um homossexual). Não era o primeiro vandalismo inexplicado. Em outra ocasião, o texto original foi substituído por uma historinha sobre Alfredo como mendigo. Um usuário tentou inserir, várias vezes, um vínculo com um site turístico sem relação com o tema.
Em outubro de 2006, Sanger anunciou um novo projeto chamado Citizendium, mais flexível que a Nupedia, mas com mais credibilidade e responsabilidade que a Wikipédia. Os colaboradores terão de se identificar e serão supervisionados por moderadores e especialistas qualificados, cujas credenciais serão conhecidas do público. Ainda não foi lançado, mas seu grau de exigência provavelmente o fará começar menor e crescer mais devagar que a concorrente.
Mesmo quando existir, os usuários custarão a descobri-lo. Google e similares hierarquizam as buscas contando a quantidade de vínculos (links) que levam, direta ou indiretamente, a cada página com a palavra ou expressão procurada, além de valorizar páginas que anunciam no buscador e suprimir aquelas que possam lhes trazer problemas.
Como os criadores de página tendem a vincular aquilo que encontram primeiro no buscador, sites grandes e conhecidos, seja qual for sua qualidade e originalidade, são perpetuados no alto da lista. É uma formidável barreira de entrada a proteger oligopólios da informação, o pensamento único e a mediocridade. Uma busca sobre algum tema enciclopedizável provavelmente mostrará na primeira página o artigo da Wikipédia e seus clones em sites comerciais que, como Answers.com, brainyencyclopedia.com, cafepress.com e outros, reproduzem seus textos sem nada acrescentar, salvo publicidade.
Tratar tal metástase de pseudo-informação medíocre e disforme não será fácil. Não se encontram facilmente acadêmicos dispostos a trabalhar de graça, muito menos tendo de se justificar a usuários semiletrados. Por outro lado, livros especializados são protegidos por copyright de publicação na web. E, mesmo postas na internet, as publicações acadêmicas são, na maioria, fechadas a não assinantes e inacessíveis aos leigos interessados em referências sérias.
Talvez governos e fundações culturais devessem financiar projetos de enciclopédias on-line supervisionados pela comunidade acadêmica, se quiserem evitar esse nivelamento por baixo e garantir às novas gerações o acesso a informações não apenas rápidas, mas também corretas e confiáveis – ou, no mínimo, uma razoável pluralidade de fontes de referência.
por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
A qualidade de boa parte da informação oferecida pela Wikipédia, a enciclopédia das novas gerações, está abaixo da crítica
Gerações anteriores de estudantes de classe média usaram a Barsa, a Mirador ou a Larousse da família, às vezes até uma biblioteca. Copiavam, claro, mas ao menos tinham de ler o texto para passá-lo ao papel almaço com a caneta.
A atual tem uma só referência e gasta menos tempo. Em “Só faço trabalho com Wikipédia”, comunidade do Orkut, uma usuária escreve: “No Google aparecem várias coisas e a gente não sabe qual está certa... Já na Wiki vai diretinho!” Outra responde: “É bom porque não precisa gastar tempo procurando, é só ir lá que o trabalho já está feito. O único trabalho é apertar Ctrl+c e Ctrl+v, mandar imprimir e acabou...”
Parece que funciona. Sinal de conivência dos professores, pois é igualmente fácil checar, com qualquer buscador, se o texto foi colado da internet sem roçar a massa cinzenta do aluno. Pensando bem, talvez nem sempre isso seja ruim. Estudar certos verbetes da Wikipédia é pôr em risco tudo o que se aprendeu, se não a sanidade mental. Uma advertência do ministério competente não estaria fora de lugar.
O artigo Ditaduras, centenas de vezes editado e revisado desde 2004, é um texto raso, confuso, mal escrito, quase ininteligível: “O termo ditadura tem o significado de oposição à democracia, onde o modelo democrático-liberal deixa de existir e a legitimidade passa a ser questionada, pois as ditaduras modernas são um movimento totalitário...” Arremata, triunfal: “Liberdade democrática é o direito que todos os cidadãos têm de escolher um ou mais representantes que governarão o país tendo em conta os interesses de todos os cidadãos. Essa liberdade é congestionada (sic) numa ditadura”.
O verbete Arianos, com histórico similar, é outro feixe de tolices e contradições. Começa já discutível: “Esta página é sobre o povo antigo que colonizou a Índia”. Seguem informações ainda mais duvidosas ou errôneas: “Por volta dos anos 8000 a.C. e 5000 a.C. um povo de língua indo-européia originário de uma zona localizada entre o Mar Negro e Mar Cáspio, nas montanhas do Cáucaso, migrou por toda a Eurásia”. No parágrafo seguinte cai no absurdo: “A maioria da população européia é de origem ariana, daí a denominação da maior parte raça européia. Existem influências pré-arianas como os lusitanos, iberos e os ilusivos (sic) bascos”. Termina com uma tripla barbaridade: “Os arianos são de origem védica, da região conhecida como Tâmil, próximo da região bengali”.
O desvairado verbete Nova Ordem Mundial (conspiração) passou por dezenas de revisões e continua a dizer: “Criou-se, através do governo oculto, o mito da ecologia. É dada às crianças a liberdade de ir e vir, ao mesmo tempo em que se combate qualquer tipo de trabalho infantil, e se impede que as escolas usem medidas de controle contra os alunos. Por influência de uma alimentação suspeita de ser à base de hormônios, a média de altura de 1,70 m para homens adultos subiu para 1,80 m. Com isso, qualquer criança de 12 anos acaba sendo maior que seus pais, impossibilitando seu controle.” Um administrador mais sensato propôs eliminá-lo. Foi contestado: “Tem nas outras (línguas), na nossa também deve ter”.
Verbetes de (auto)promoção são comuns. Por exemplo, o do medíocre escritor paulista Orlando Paes Filho: “Baseada em uma precisa pesquisa histórica de fatos e pensamentos da Idade Média, a saga de Angus se estenderá (sic) por sete livros e cobrirá doze séculos da nossa (sic) história”. Ou o da marca Close-up: “Com este nome a Unilever mantém um projeto de prevenção e promoção de saúde bucal (...). A marca é um dos grandes destaques do mercado publicitário”. Seguem vínculos para sites de propaganda. Ou Dove: “Uma marca de história e um caso de sucesso no mundo inventivo do marketing de produtos”.
Também nos EUA, estudantes se acostumam com informação instantânea a tal ponto que procurar uma ou duas horas por uma boa fonte lhes parece absurdo. Um estudo sobre hábitos de pesquisa no conceituado Wellesley College, de Massachusetts, fez seis questões a alunos de uma turma de computação. Menos de 2% usaram fontes fora da internet para responder a qualquer delas. E a maioria se satisfez com a primeira informação que encontrou, sem conferi-la em outras fontes.
“Wiki”, em havaiano, é “rápido”. Rápido demais.
O projeto surgiu em 2001. Larry Sanger era, desde o ano anterior, o editor-chefe de um projeto sério, a Nupedia: uma enciclopédia on-line gratuita, de qualidade profissional, escrita e revisada por especialistas com, pelo menos, grau de doutorado.
A exigência de rigor exigia tempo e a Free Software Foundation, fornecedora da tecnologia, decidiu que o tradicional processo acadêmico de revisão por pares era burocrático e contrário à filosofia “democrática” do software livre. Iniciou um projeto concorrente, a GNUPedia. A pressão levou Sanger a criar a Wikipédia como um rascunho para que voluntários anônimos propusessem colaborações, antes que uma revisão formal as liberasse para a Nupedia.
O novo portal atraiu, como se esperava, os interessados no projeto concorrente, mas a crise das pontocom se agravou. Jimmy Wales, financiador do projeto, cortou o salário de Sanger, que se demitiu. A Nupedia foi abandonada com 24 artigos prontos e 74 em elaboração e a Wikipédia cresceu sem controle. Hoje, inclui 1,6 milhão de artigos em inglês e 4,8 milhões em 249 “línguas”, incluindo dialetos como “napolitano”, “lombardo” e “alemão da Pensilvânia” e pseudo-idiomas artificiais como klingon e volapuque.
Em 2004, no site kuro5hin.org, Sanger fez uma crítica muito dura à filha transviada. Explicou ter deixado o projeto por ser muito sério para um hobby em tempo parcial, mas também por não ter paciência para aturar, de graça, a “atmosfera venenosa do projeto”.
A começar pelo próprio Jimmy Wales, explicou Sanger, a comunidade da Wikipédia tem uma cultura antiintelectual. Falta respeito para com a perícia e experiência de especialistas e sobra tolerância para com quem os despreza e ridiculariza. Quem tem qualificação, mas pouca paciência, desiste: ao editar artigos sujeitos a qualquer controvérsia, terá de defender exaustivamente suas opiniões contra leigos ineptos, prontos para desfigurar seu trabalho e denunciar suas objeções como “censura”. Se reclamar, receberá um passa-moleque ou um pedido para “cooperar” com colegas incultos e pouco razoáveis. Muitas pessoas capazes, dispostas a cooperar educadamente com parceiros que fossem racionais, bem informados e bem-intencionados, caíram fora.
Em junho de 2006, depois de um festival de auto-elogios, calúnias sem provas, insultos, supressão de dados incômodos e sabotagens a biografias de políticos e personalidades, Wales impôs um mínimo de ordem. Fechou alguns dos artigos mais controversos a edições não autorizadas pelos administradores e criou um comitê de arbitragem. Começou-se a assinalar afirmações duvidosas com a nota “Carece de fontes” (confira o verbete Ditaduras cubanas para um exemplo tragicômico). Mas, em nome dos “direitos individuais”, Wales recusou-se a incorporar um controle editorial mais extenso.
A idéia é que, por tosco e parcial que seja o artigo inicial, as sucessivas edições, mesmo por usuários não especializados, logo o melhorariam e o aproximariam do estado da arte, à medida que cada um trouxesse o seu pedacinho de informação – tanto que a organização mede a “profundidade” de seus artigos, acredite se quiser, pelo número de alterações feitas.
Assim como certos economistas pensam que a soma dos conhecimentos de milhões de participantes de uma bolsa de valores resulta necessariamente na melhor avaliação possível de uma empresa ou mercadoria, que nenhuma análise ou perícia especializada poderia sonhar superar. Não é verdade na economia, como se viu no colapso do índice Nasdaq e de gigantes como a Enron e a Worldcom na virada do milênio.
Muito menos no conhecimento. Basta um passeio rápido para se constatar que (ao menos na versão em inglês) um verbete tem mais chances de ser bem-feito e confiável quando trata de um tema tão especializado e insignificante aos olhos do leigo que os especialistas têm permissão de trabalhar em paz.
Mas o usuário médio fica satisfeito por encontrar uma resposta rápida. Audiências de executivos e marqueteiros, às quais Robert McHenry, ex-editor-chefe da Encyclopedia Britannica, perguntou se não era importante que a resposta também fosse correta, responderam com olhares de embaraço ou de indiferença.
McHenry rastreou a história de um verbete para mostrar como sua dialética encaminha o texto não ao estado da arte, mas sim à mediocridade do usuário médio. Um artigo razoavelmente coerente sobre um dos “pais fundadores” dos EUA foi emendado por palpites e opiniões contraditórias até cair ao nível de uma redação ruim de ensino médio (grau C, na sua avaliação). Seu conselho:
– Quem vai à Wikipédia aprender algo ou confirmar um fato está na situação de quem visita um sanitário público. A imundície pode ser evidente e levá-lo a ter cuidado, ou a aparência de limpeza pode lhe dar uma falsa sensação de segurança. O que ele certamente não sabe é quem foi o último a usar a privada.
Ou a rabiscar a porta. Em 6 de fevereiro, quem procurasse, na versão em inglês, pelo rei Alfredo, o Grande – um dos mais importantes da Inglaterra medieval – encontraria apenas a frase “he was a gay boy” (ele era um homossexual). Não era o primeiro vandalismo inexplicado. Em outra ocasião, o texto original foi substituído por uma historinha sobre Alfredo como mendigo. Um usuário tentou inserir, várias vezes, um vínculo com um site turístico sem relação com o tema.
Em outubro de 2006, Sanger anunciou um novo projeto chamado Citizendium, mais flexível que a Nupedia, mas com mais credibilidade e responsabilidade que a Wikipédia. Os colaboradores terão de se identificar e serão supervisionados por moderadores e especialistas qualificados, cujas credenciais serão conhecidas do público. Ainda não foi lançado, mas seu grau de exigência provavelmente o fará começar menor e crescer mais devagar que a concorrente.
Mesmo quando existir, os usuários custarão a descobri-lo. Google e similares hierarquizam as buscas contando a quantidade de vínculos (links) que levam, direta ou indiretamente, a cada página com a palavra ou expressão procurada, além de valorizar páginas que anunciam no buscador e suprimir aquelas que possam lhes trazer problemas.
Como os criadores de página tendem a vincular aquilo que encontram primeiro no buscador, sites grandes e conhecidos, seja qual for sua qualidade e originalidade, são perpetuados no alto da lista. É uma formidável barreira de entrada a proteger oligopólios da informação, o pensamento único e a mediocridade. Uma busca sobre algum tema enciclopedizável provavelmente mostrará na primeira página o artigo da Wikipédia e seus clones em sites comerciais que, como Answers.com, brainyencyclopedia.com, cafepress.com e outros, reproduzem seus textos sem nada acrescentar, salvo publicidade.
Tratar tal metástase de pseudo-informação medíocre e disforme não será fácil. Não se encontram facilmente acadêmicos dispostos a trabalhar de graça, muito menos tendo de se justificar a usuários semiletrados. Por outro lado, livros especializados são protegidos por copyright de publicação na web. E, mesmo postas na internet, as publicações acadêmicas são, na maioria, fechadas a não assinantes e inacessíveis aos leigos interessados em referências sérias.
Talvez governos e fundações culturais devessem financiar projetos de enciclopédias on-line supervisionados pela comunidade acadêmica, se quiserem evitar esse nivelamento por baixo e garantir às novas gerações o acesso a informações não apenas rápidas, mas também corretas e confiáveis – ou, no mínimo, uma razoável pluralidade de fontes de referência.
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